segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Carta aos educadores populares [sobre a educação multitudinária]

“A possibilidade de uma gestão justa e igualitária do capital
me parece, todavia, uma idéia tola:
o capital não pode sobreviver sem exploração”
Antonio Negri


Caros companheiros educadores populares,

Há cinco anos o Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis iniciou um projeto social chamado Pão & Beleza – Espaço Cidadão. Durante todo este tempo tal experiência não cessa de nos provocar o pensamento, estremecendo nossas certezas e nos convocando a repensar alguns pressupostos e finalidades que sustentam o trabalho.
Há tempos também venho pensando qual seria a melhor maneira de partilhar com vocês, companheiros da luta anticapitalista, estas provocações e abalos. Pensava num artigo, à maneira daqueles produzidos nas universidades. Logo repensei. Pois se trata de partilhar idéias com companheiros, ou seja, pessoas ao mesmo tempo desconhecidas e irmãs. Foi assim que optei por escrever uma carta.
Há uma riqueza única nas cartas, que vai muito além das limitações impostas pela palavra escrita. E cada um dos que já trabalharam com práticas alfabetizadoras saberá do que estou falando. Pois todos certamente já presenciaram a emoção que toma conta de um companheiro-educando quando este redige sua primeira carta, a ser enviada aos filhos, aos netos, aos irmãos, que tornaram-se vagas lembranças, dada a distância espaço-temporal imposta pela migração e pela pobreza.
Gostaria, então, de pedir-lhes licença. A vocês que estão cotidianamente reunidos nos salões paroquiais de tantas igrejas, nos pátios de tantas fábricas abandonadas, nas terras que um dia foram latifúndios improdutivos. Enfim, a vocês que são, ao mesmo tempo, tão estranhos e tão familiares. Licença para contar. Não o dia-a-dia, mas sim o que fomos sendo convocados a pensar por tantos dias decorridos ao longo destes anos.
***
1 – Uma metodologia materialista

Ao final dos anos 1990, a realidade grita às portas do Centro de Defesa dos Direitos Humanos as seguintes palavras: queremos comida! A entidade, em seus vinte anos de existência, tinha como prática assessorar as pessoas empobrecidas em questões muito variadas, inclusive relacionadas à fome. Mas nunca tantas pessoas buscaram-na para pedir comida. Que fazer? Em função desta demanda cria-se o projeto Pão & Beleza – Espaço Cidadão, como resposta de uma instituição de defesa dos direitos humanos à realidade emergencial da fome.
Este enunciado traz ao primeiro plano a metodologia materialista que orienta não apenas o dia-a-dia do projeto, mas as opções da instituição ao longo de seus trinta anos de existência: a realidade é o comandante supremo.
Isto, para a tradição da educação popular, pode parecer lugar comum. Nossos pressupostos e finalidades em geral parecem obedecer a este mesmo comando. E a máxima “partir da realidade dos educandos” só fortalece esta percepção de um materialismo que está à frente da educação popular.
Contudo, o dia-a-dia de nossas ações no projeto Pão & Beleza mostrou que também este lugar comum deve ser colocado sob suspeita. Muitas foram as vezes que nos pegamos fazendo discursos idealizados sobre cada uma das pessoas que participam do projeto, sobre as transformações que pretendíamos realizar sobre a realidade, e sobre o mundo como um todo.
Ao nos darmos conta disto, perguntamos: que é que efetivamente a realidade está exigindo? Serão nossas metodologias, conceitos e intervenções já constituídos aqueles realmente necessários? Precisamos, então, acertar diversos ponteiros entre os sonhos da instituição, de seu projeto e da realidade material das pessoas.

2 – Para além da conscientização: a sensibilização

Desde sua elaboração, o Centro de Defesa dos Direitos Humanos tinha a certeza de que dar comida seria pouco, além de não condizer com a missão institucional. Portanto, inspirando-se no título do livro de Frei Betto, Fome de Pão e de Beleza, pensou-se em unir as ordens da realidade àquilo que a instituição tinha de melhor a oferecer: a educação popular.
Assim é que se constituiu, na cidade de Petrópolis, um espaço que oferecia à população empobrecida uma rede de serviços sócio-assistenciais, educacionais, culturais. Para participar, duas contrapartidas: pagar R$ 1,00 por uma refeição saborosa, nutritiva e de qualidade; participar, uma vez por semana, das atividades dos Grupos de Referência.
Nos primórdios, pensava-se nos Grupos de Referência como espaço privilegiado para realização da educação. Rodas de conversa, dinâmicas pedagógicas, audiência de músicas e filmes, passeios educativos. Todas as atividades prioritariamente áudio-visuais, tendo a fala como principal veículo conscientizador.
Algum tempo se passou e pudemos perceber que todos os espaços eram espaços educativos. Passamos a almoçar junto com as pessoas no refeitório e permanecer junto delas também para bater-papo, partilhar o dia-a-dia, durante sua permanência no espaço. Com isso, a referência deixou de ser o espaço dos grupos e tornou-se o espaço do projeto como um todo.
Este deslocamento espaço-referencial trouxe outro ganho. Pessoas que não davam qualquer “resposta” à metodologia dos Grupos de Referência mostraram cara nova. Gente que não sorria, passou a gargalhar. Gente que mal falava, passou a tagarelar. Gente que mal parecia estar ali, passou a marcar presença. E passamos a nos perguntar: o que isso tudo quer dizer?
Entendemos então que conscientizar é um termo vazio quando seu público é constituído, quase que totalmente, por pessoas em que o funcionamento da consciência é muito pequeno ou inexistente: portadores de sofrimento psíquico, dependentes químicos, moradores de rua (que concentram essas duas características), pessoas que nunca frequentaram a escola, pessoas que vivem em barracos precários, pessoas já há mais de uma década sem rendimentos que correspondam às necessidades.
Passamos a desenvolver práticas de sensibilização, que levavam em consideração as pessoas como realmente se apresentavam, e não como o ideário construído no terreno da educação popular apresentava. E isso é mais que trocar um termo por outro. Sensibilizar leva em consideração que a consciência é apenas uma ínfima parte da humanidade de cada pessoa e não define a condição ontológica cidadã de quem quer que seja.

3 – Ao invés de amassar as singularidades, fazer multidão

Esta condição existencial também nos levou a repensar um dos fundamentos da educação popular: o povo. E também a repensar uma das máximas da organização popular: injetar fermento na massa.
Porque em nosso dia-a-dia de atividades percebemos que tratar os grupos com vistas a fazer massa ou povo resultava em pouco mais que tentativas. Distantes como estávamos de pessoas organizadas em torno do emprego formal “de carteira assinada”, nosso trabalho consistiu em buscar apreender qual elemento comum as mantinha ligadas ao cotidiano do projeto.
Resultado: estávamos diante de uma multidão de pessoas únicas, singularidades, com incontáveis riquezas (não econômicas) sufocadas pelo empobrecimento. E mais: enfraquecidas pela fragmentação provocada por relações que maximizam a exploração da vida em todas as dimensões – onde o único efetivamente beneficiado é o próprio capital.
Estávamos muito mais diante de um pobretariado que de um proletariado! Para onde ir? Nada de fazer povo ou massa, mas sim fazer multidão. Ou seja: provocar processos de singularização, ao invés de identificação; produzir diferenças, ao invés de apagá-las; e ao reconhecer a dimensão imediatamente produtiva dessa multidão de singularidades fragmentadas, fortalecer sua cooperação.
Em outras palavras: potencializar o comum (para além do público e do privado!) e oxigenar a riqueza sufocada pelo empobrecimento (pois é da riqueza dos pobres que se fará a revolução!).

4 – Respostas, não conclusões

E se vocês, meus caros companheiros, nos perguntarem: o que conseguiram com isto?, as respostas podem variar: números, depoimentos, vidas modificadas. Mas a melhor resposta é também a menos conclusiva: conseguimos apenas elementos para orientar melhor os caminhos de nossa prática. Pois trata-se, sobretudo, de tentar responder a uma outra velha pergunta: como esmagar a pobreza e criar um mundo radicalmente democrático e livre da exploração capitalista?
Nossas experiências nos convocaram a buscar respostas diferentes daquelas formuladas no campo da educação popular. Por isto o materialismo, a sensibilização, a multidão. É através desta educação da multidão, desta educação multitudinária, que estamos tentando escrever novas respostas, adequadas a novos tempos.
***
E aqui chego ao fim. Unicamente para relembrar: escrever uma carta foi minha tentativa de chegar o mais próximo possível da palavra falada. Em última instância, o desejo é abrir um diálogo respeitoso e companheiro, com base nestas realidades que nos levaram a repensar, a refletir e a iniciar algo muito diverso de uma crítica – um processo de criação. Aguardarei ansioso pelas palavras daqueles que quiserem ou puderem responder!

Com gratidão, despeço-me com um forte e terno abraço!

Silvio Machado

PS: foram utilizados livremente nesta carta conceitos desenvolvidos principalmente por Antonio Negri e Michael Hardt nos livros Império e Multidão.

Um comentário:

Vitor Janei disse...

Silvio,
Neste momento o que tenho a dizer é que sinto duas coisas: primeiro, uma profunda admiração por você e por seu trabalho. É preciso muito estômago para suportar tanta miséria e alegrias. Segundo, sinto saudades meu caro, gostaria de partilhar muitas coisas contigo meu amigo.
Abraços